o blog do condominio mister hull

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

Considerações sobre Magnólia


Muitas foram as pessoas que condenaram Magnólia em função de uma inesperada reviravolta que acontece na meia hora final de projeção. Para estas pessoas, o filme se torna ilógico e até mesmo insuportavelmente surreal a partir do momento em que os personagens da história são surpreendidos por uma intensa chuva... de sapos!

Mas será que este fenômeno que assola Los Angeles no final da trama é tão sem sentido assim? Não creio. Quando assisti a este filme pela primeira vez, interpretei a chuva de sapos como uma metáfora para o 'acaso' - aquele fator inesperado que pode alterar o curso da vida de qualquer pessoa: um acidente, uma briga, a descoberta de uma marca de batom no colarinho, um pneu furado... O que me levava a esta análise era a seqüência de abertura do filme, que abordava as incríveis coincidências que ocorriam a todo instante por todo o planeta. Pensem nisso: uma pessoa está passando em frente a um shopping center quando, de repente, sente fome e decide comer algo na praça de alimentação do lugar. Momentos depois, uma explosão provocada por um vazamento de gás acontece e ela morre (todos se lembram desta tragédia recente). Ou - para citarmos outro trágico caso real - uma garota caminha tranqüilamente pela Avenida Paulista quando, para seu infortúnio, um guindaste despenca de uma altura de mais de vinte andares, atingindo o chão no exato momento em que ela passava no local. Para mim, a 'chuva de sapos' representava a explosão de gás ou o guindaste. Um infortúnio. O acaso.

No entanto, depois de assistir Magnólia mais duas vezes, compreendo que estava equivocado. Há uma outra interpretação muito mais complexa, interessante e simbólica para a famosa chuva do filme. Na verdade, a pista inicial que me levou a esta análise partiu da observação de um curioso cartaz na cena em que o programa de Jimmy Gator está prestes a começar. Carregado por um membro da platéia do show, o cartaz traz a inscrição 'Êxodo 8:2'. Uma rápida consulta à Bíblia revela o seguinte versículo: 'Mas se recusares a deixá-lo ir, eis que ferirei com rãs todos os teus termos'.

E isso muda tudo, sendo o 'acaso' substituído por 'intervenção divina'. Em minhas visitas subseqüentes ao filme, percebi (para meu grande espanto) que os algarismo 8 e 2 estão presentes ao longo de toda a trama, provando que Paul Thomas Anderson não é apenas um diretor competente, mas também um autor capaz de sutilezas surpreendentes. Alguns momentos em que estas pistas podem ser encontradas são:

- Na seqüência inicial: na lateral do avião que apaga o incêndio na floresta; no formato de uma corda localizada aos pés do jovem que salta do prédio; e nas cartas distribuídas pelo homem que viria a ser atirado no alto da árvore.

E mais:

- No letreiro que diz 'Probabilidades de chuva: 82%';

- Na caixa postal de Jim Kurring;

- Na numeração de presidiária de Marcy;

- No quadro-negro do bar freqüentado por Donnie Smith;

- Na placa do carro particular de Kurring; e assim por diante.

Outro elemento de Magnólia que chamou minha atenção foi o garotinho que canta um rap para o policial Jim Kurring. Quem é ele? Por que está tão ansioso para que Worm (possível assassino do homem encontrado no armário logo no início do filme) seja capturado? É claro que Anderson introduziu este personagem na trama com algum propósito. Mas qual?

É então que uma frase dita por Henry Gibson (o sujeito com quem William H. Macy disputa a atenção do bartender) esclareceu a questão: enfastiado com a presença do rival, Gibson diz: 'É perigoso confundir crianças com anjos' - ao que Macy replica: 'NÃO é perigoso confundir crianças com anjos'. Uma análise apressada poderia nos levar à conclusão de que eles estavam se referindo a Brad, o jovem bartender por quem ambos estão apaixonados. Mas foi então que, ao assistir o filme pela terceira vez, prestei realmente atenção ao que o rap do garotinho dizia. Entre outras coisas, o menino dizia 'Eu sou o Profeta' e - o que é mais interessante - 'Quando tudo se complica, Deus faz chover'.

Pulemos para a cena em que Jim Kurring é quase morto por Worm: ao se atirar nos arbustos, o policial perde seu revólver. Em seguida, vemos o pequeno rapper correndo com a arma. E agora, faço a pergunta-chave: você se lembra de como o revólver reaparece? Exato! Ele cai do céu depois da chuva de sapos! E o garotinho não volta mais a aparecer...

Interessante? Pois a coisa fica ainda melhor quando paramos para analisar os resultados da chuva em si. Segundos antes dela acontecer, todos os personagens do filme atingiram seus próprios limites: Donnie Smith está prestes a ser preso por Jim (que, por sua vez, acaba de perder Claudia); Jimmy Gator resolve se matar depois de confessar para Rose que molestou a filha; Stanley se isola na biblioteca para fugir da opressão do pai; Frank passa pelo conflito de ver o pai (que pensava odiar) à beira da morte; e, finalmente, Claudia se entrega novamente ao vício. Todos parecem perdidos, solitários e tristes.

É então que Frank T.J. Mackey grita para o pai: 'Não se vá! Não se vá!'.

Lembre-se novamente de Êxodo 8:2: 'Mas se recusares a deixá-lo ir, eis que ferirei com rãs todos os teus termos'.

Em resposta ao pedido de Mackey, a chuva começa e, de certa forma, traz a redenção para todos: Donnie é atingido por um sapo e quebra os dentes (o que finalmente o leva a compreender sua própria capacidade de amar - além, é claro, de agora realmente precisar de aparelho); Claudia se reencontra com a mãe; Jimmy não consegue se matar, atingindo o aparelho de televisão (outra interessante metáfora, já que sua vida na TV o levou aos excessos que o condenaram); Frank e o pai se reencontram pela última vez (Earl acorda com o barulho da chuva); Kurring decide procurar Claudia ao recuperar sua confiança (e sua arma); e Stanley decide pedir ao pai que o 'trate melhor'.

Já o enfermeiro Phil Parma, sendo o único personagem estável do filme, presencia tudo com espanto, já que não precisa daquilo para resolver seus conflitos. Não é à toa que ele é o único a dizer alguma coisa com relação à chuva de sapos. Por outro lado, a personagem de Julianne Moore já havia sido salva graças à intervenção... do pequeno rapper, que chamara uma ambulância ao encontrá-la à beira da morte.

Sim, o que estou dizendo é que talvez o garotinho fosse realmente o 'Profeta' que dizia ser. Um anjo. E talvez este anjo seja a metáfora de Paul Thomas Anderson para o 'acaso'. E, assim, voltamos ao ponto-de-partida.
(Cinema Em Cena)